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Muitas histórias, uma só espécie

  • Publicado: Terça, 24 de Agosto de 2021, 16h18
  • Última atualização em Quarta, 01 de Setembro de 2021, 19h23

Nelson Rego

        Em Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas, Jared Diamond apresenta dois necessários alertas. O primeiro é para não confundirmos explicações sobre fatores que possibilitaram a alguns povos dominar outros com justificativas para o domínio. O segundo é para evitarmos a precipitação de rotular seus estudos como deterministas e deixar de melhor compreendê-los. Ele repete esses avisos em entrevistas e escritos posteriores. Sugiro ao leitor iniciante de Diamond um terceiro aviso: não acreditar que suas pesquisas e reflexões possam interessar apenas a quem deseje saber sobre as relações de sociedades passadas com o ambiente, elas importam também, e muito, para a compreensão do mundo de agora, com suas tecnologias e sociedades interconectadas. Tentarei expor de maneira sintética um pouco do pensamento de Diamond, depois, retornarei aos motivos dos avisos.

    Na relação com o ambiente, Diamond situa respostas decisivas para a pergunta central do livropor que algumas sociedades se tornaram melhor sucedidas? Suas respostas não excluem outras, relacionadas aos modos de organização social e produção econômica, mas valorizam questões pouco destacadas pelas ciências sociais. A referência ao “sucesso” de uma sociedade não diz respeito a discussões sobre valores como justiça e igualdade de oportunidades, mas a fatos relacionados à conquista de condições mais sólidas para a garantia da vida face ao ambiente, o que contribuirá para explicar como alguns povos estabeleceram domínios sobre outros.

    Diamond retoma a linha de tempo que apresentara em livro anterior, O Terceiro Chimpanzé: a evolução e o futuro do ser humano.  A linha inicia nas formas através das quais a espécie humana foi se distinguindo dos primatas mais próximos na árvore evolutiva, a partir de sete milhões de anos atrás, na África, e vai até o fim do último período glacial, quando nossos ancestrais passaram a acelerar sua difusão pelos continentes. A isso, Diamond relaciona tempos muito diferenciados para as comunidades em seu desenvolvimento. Muitos séculos, e mesmo alguns milênios, podem estar em jogo para fatores como o surgimento da agricultura possibilitada por condições favoráveis.

    Após, há um capítulo especialmente importante para demonstrar seus argumentos sobre a relação entre condições naturais e histórias distintas. Diamond examina como as sociedades polinésias diferenciaram-se acentuadamente, há cerca de 3.000 anos, face à variedade dos ambientes encontrados nas muitas ilhas do Pacífico nas quais se disseminaram.

    Na sequência, analisa os confrontos entre espanhóis e nativos do continente americano no século XVI, principalmente o episódio do massacre efetuado por apenas 168 espanhóis, comandados por Pizarro, contra o exército de milhares de incas liderados pelo imperador Ataualpa. Indica os fatores que possibilitaram aos invasores dizimar os nativos: navios, como condição para o transporte transatlântico de homens e equipamentos, e organização militar, cavalos, armas de fogo, armaduras e espadas de aço, no campo de batalha. O episódio serve de exemplo para Diamond referir-se a outros genocídios perpetrados por europeus sobre povos nativos. Mas de maneira mais abrangente, destaca o impacto mortífero causado por varíola, sarampo e outras doenças que os europeus portavam e contra as quais os astecas, incas e outros povos não possuíam anticorpos. Pólvora e aço constituem explicações imediatas para a vitória militar, mas a grande questão é relacionada ao vínculo entre acúmulo de fatores e respostas dos ancestrais ao longo de uma história que não será bem compreendida se não incluir a perspectiva de relações ambientais em diferentes escalas de tempo.

    Num tempo mais amplo que alguns séculos, o acúmulo de fatores vincula-se à combinação entre extensão da área geográfica habitada e menor ou maior isolamento das populações. Quanto menor tenha sido o isolamento e maior a extensão habitada por diferentes povos em contato, mais as sociedades desenvolveram o binômio organização/tecnologias. Contatos acentuaram a busca movida pela soma de necessidade defensiva com vantagens advindas do domínio sobre outros. Essa busca gerou tecnologias e maior organização. A combinação mais forte, para Diamond, implicou em densidade de contatos e consolidações de domínios territoriais sem unificações demasiadamente extensas, pois a permanência das disputas continuou a impulsionar acúmulos tecnológicos. Ele entende que diversidade topográfica e ausência de barreiras intransponíveis favoreceram os europeus na combinação entre contatos e separações, comparativamente aos chineses, em suas imensas planícies.

    Diamond observa que houve maior produção, difusão e manutenção de tecnologias na Eurásia em comparação com Oceania e África Negra, de contatos dificultados pelas geografias. No continente americano, ele indica como obstáculos severos os vastos desertos, entre as terras que viriam a ser México e Estados Unidos, e a passagem estreita do Panamá, pouco favorável à comunicação entre América do Sul e Central, ao contrário das amplas áreas de contato na extensão eurasiana. Mais ainda, considera fundamental a disposição leste-oeste do eixo maior da Eurásia, macrofator para estabelecer a sucessão longitudinal de climas não tão díspares em larga e comprida faixa territorial, comparativamente ao continente americano, de eixo principal no sentido norte-sul, de uma região polar até a outra, atravessando zonas frias, temperadas, tropicais e a equatorial. A disposição no sentido leste-oeste propiciou a consolidação de agriculturas mais ou menos contíguas em grandes porções da faixa eurasiana, e aí reside fator crucial – Diamond define a agricultura como a grande tecnologia que gerou profunda assimetria entre sociedades.

    Ao selecionar e cultivar vegetais que nossa espécie pode comer, os agricultores modificaram de forma cabal a relação com o ambiente. Diamond estima que, ao invés de formar 0,1% da biomassa de um hectare, os vegetais comestíveis passaram a constituir 90% da biomassa. Em consequência, esse hectare passou a alimentar dezenas de vezes mais pessoas do que a média obtida pelo método de coleta e caça. Em seguida, as comunidades agrícolas passaram a criar animais com o excedente, gerando novo salto: animais domesticados se tornaram fonte de carne e leite, de fertilizantes (estrume) e força para arar a terra. A proteína animal se tornou mais abundante para as comunidades agrícolas do que para as tribos caçadoras.

     A força de tração animal possibilitou a expansão das plantações para relevos menos favoráveis. Cresceram gradativamente as áreas ocupadas e as linhas de contato entre núcleos agrícolas – mais trocas, mais disputas territoriais. Um fator reforça outros numa espiral cumulativa. Nas tribos nômades, a necessidade de carregar frequentemente crianças e pertences condicionava a que não pudesse ser grande o número de pertences nem de crianças que ainda não caminhassem. Agricultores permanecem junto a seus campos e criações, podem acumular pertences. E o nascimento de crianças é liberado da exigência de que as crianças anteriores andem com desenvoltura, ocasionando a diminuição das práticas de infanticídio e aborto. A capacidade de alimentar mais pessoas por hectare, aliada ao aumento da natalidade, fez com que a sociedade de agricultores atingisse densidades populacionais muito maiores do que entre os caçadores nômades.

    Outra consequência do modo de vida agrícola é que ele permite guardar excedentes, tarefa impossível quando não há um grupo que permaneça a zelar junto aos estoques alimentares. Acúmulo de estoques, pertences e tecnologias foram fundamentais para o aparecimento de especialistas em tarefas não ligadas à agricultura no habitat novo propiciado por cidades. Diamond comenta que, enquanto nas sociedades nômades os chefes estavam apenas um pouco acima do coletivo, a divisão de trabalhos e funções nas sociedades agrícolas levou à gradual estratificação, surgindo militares, reis, senhores intermediários, filhos estabelecidos na elite por hereditariedade e um conjunto de funcionários especialistas com diferentes hierarquias. As camadas que exerciam o controle sobre a produção e circulação de mercadorias precisavam criar formas para registrar esses movimentos e, assim, surgiu e evoluiu a escrita – a outra grande tecnologia que Diamond considera decisiva para o domínio de alguns povos sobre outros. Através dos séculos, a escrita fomentou a capacidade de criar conhecimento, o que impulsionou a inventividade tecnológica. As elites chegaram a um patamar de organização capaz de mobilizar recursos de toda ordem em estratégias de longa duração para tropas invasoras levadas a espaços remotos. Isso culminou nas conquistas transcontinentais realizadas pelos europeus. Exércitos numericamente inferiores, dotados de tecnologias devastadoras, derrotaram exércitos mais numerosos, apoderaram-se de territórios, submeteram povos de menor acúmulo.

    Outro fator fundamental associado ao longo processo agrícola foram os patógenos. Grande parte dos patógenos que podem dizimar populações tem origem na criação de animais. As sociedades eurasianas, agrícolas e criadoras de rebanhos há milênios, desenvolveram parciais imunidades. Enquanto outras sociedades, sem as mesmas defesas, foram desestruturadas pelos genocídios causados também por meio indireto, sem uso da força, por efeito das doenças vindas com os invasores. Para Diamond, navios, aço e armas de fogo são explicações inalienáveis para compreendermos a vitória imediata de poucos sobre muitos, porém, fator ainda mais importante para o domínio encontra-se nos vírus, bacilos e demais patógenos associados à história de tempo longo da agricultura e criação de animais.

    Diamond dedica pouca atenção às explicações mais correntes nas ciências sociais, explicações baseadas em interesses, conflitos e blocos de poder entre classes e grupos sociais, ideologias, personagens coletivos e individuais de nomes e datas identificáveis. Ele dedica pouca atenção a essas análises e também não as nega. Sua perspectiva está voltada para outra temporalidade.

    Ele retrocede até sete milhões de anos para situar posteriores diferenças de alguns milhares de anos no espalhamento desigual da espécie humana pelo planeta, tempos díspares para a longa evolução de sociedades agrícolas. Essas amplas diferenças, cuja compreensão é inseparável das disposições físicas dos ambientes continentais, explicam a enorme assimetria na geração de tecnologias definidoras do acúmulo de fatores de domínio. Isso não nega explicações situadas em outras temporalidades. Ao contrário, pode lhes fornecer nova base material para a compreensão da história densa de episódios no tempo curto de alguns séculos cinzelando imensos volumes temporais e espaciais pensados pela perspectiva longa.  

    Em Colapso: como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso, Diamond apresenta argumentos complementares. Se, em Armas, Germes e Aço, a pergunta condutora era sobre as causas do “sucesso”, em Colapso, o foco está nas respostas, a variáveis ambientais, que conduziram sociedades ao declínio. Examina casos paradoxais, sendo o colapso da sociedade polinésia da Ilha de Páscoa o exemplo talvez mais estarrecedor. Diamond liga o erguimento das estátuas gigantescas ao uso massivo dos recursos madeireiros necessários à proeza, resultando em destruição da cobertura florestal e colapso do frágil ecossistema. O colapso contextualizou o quadro de escassez, fome e conflitos mortais entre clãs da ilha remota, sem possibilidade de trocas frequentes com outras sociedades. Diamond examina outros exemplos antigos e observa algumas sociedades contemporâneas. Indaga se, com dimensões e complexidade maiores, caminhos para novos colapsos não estarão sendo hoje trilhados. Comenta que identificar absurdos antigos é bem mais fácil do que perceber, ou aceitar, que ações atuais correspondem a absurdos similares com efeitos presentes e futuros. Aprenderemos com o passado?

    Se Diamond pede para não confundirmos explicações sobre o domínio de algumas sociedades sobre outras com justificativas ou, pior, elogio da dominação, é porque essa confusão muitas vezes acontece. Em resposta, com simplicidade, nos faz lembrar de que compreender é condição necessária para não repetir. Se ele pede para não ser rotulado como determinista ambiental, é para entendermos que uma perspectiva longuíssima de tempo está no cerne de sua análise. Suas explicações apresentam razões necessárias, mas não suficientes: a história das sociedades nos últimos séculos e a análise em outra escala temporal da espécie humana estão imbricadas. Ao fundo das sociedades modernas, ainda latejam efeitos de respostas ancestrais que, há milhares de anos, precisaram adaptar-se a ambientes diversos. Compreendendo o passado também por essa perspectiva, podemos desprender-nos do inevitável que pesou sobre a história da espécie e ainda ecoa. Condição necessária para saber é reconhecer.

    As pesquisas e reflexões de Diamond interessam para além do saber sobre ambientes e sociedades antigas. Com suas tecnologias e sociedades interconectadas, o mundo global se manifesta fraturado por antagonismos que, muitas vezes, incidem na negação do conhecimento. Diamond acentua um princípio: junto com nossas muitas histórias, somos uma espécie. Os modos da relação com o ambiente planetário têm um grau inédito de interconexão entre regiões. “Dominamos” o ambiente como nunca antes, mas o “domínio” não significa que tenhamos ultrapassado a dependência biológica a esse mesmo ambiente, nem que suas alterações deixaram de refluir sobre nós. Mudanças ambientais têm acentuado secas, inundações e outros fenômenos e se entranhado às dinâmicas de dramas sociais históricos. Respostas a esses dramas têm deixado de incluir conflitos letais intra e entre sociedades? A pandemia da Covid-19 e as discussões acerca da agenda global para frear o aquecimento não exemplificam o quanto o embate entre ciência e negacionismo pode ser impulsionado numa direção pró-ciência pela perspectiva de Diamond?

Fonte:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2021/08/fronteiras-do-pensamento-2021-estreia-nesta-quarta-feira-com-o-tema-era-da-reconexao-ckspa2v3m00ak013bz8ygy8ot.html

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